Dilema: abandonar a democracia ou o neoliberalismo?

Os países que adotaram o neoliberalismo, no mundo inteiro, o abandonaram para manter suas democracias ou o mantiveram, seguindo guinada autoritária

Publicada em 1º de setembro de 2022.

A teoria do modelo neoliberal foi elaborada na Escola de Economia de Chicago, com inspiração na Escola Austríaca, de Mises e Hayek (ídolos de gerações de anarcocapitalistas, no Brasil e no mundo). A primeira implementação prática se deu no Chile, durante a ditadura do “mito do mito” e maior assassino das Américas durante a década de 1970, Augusto Pinochet. A partir do final da década de 1980, com o fim das ditaduras latino-americanas, foi sistematizado no Consenso de Washington. Gerentes em vários países implementaram esta última versão, como nos casos de Fujimori, Menem e FHC.

Bolsonaro pertence a um grupo de líderes nacionais com grande proximidade nas áreas social, econômica e política. O grupo ao qual me refiro inclui Victor Orbán (Hungria), Narendra Modi (Índia) e Vadmir Putin (Rússia); entre os que não chegaram ao governo de seus países estão Jimmie Akesson (Suécia) e Matteo Salvini (Italia); Rodrigo Duterte (Filipinas) já não governa, mas deixou herdeiro. A proximidade com esses líderes fica muito clara na agenda internacional da Presidência da República nos últimos anos. As características mais uniformes do grupo são o autoritarismo na política e ultraconservadorismo (quase sempre religioso) na ordem social. Na economia, variam entre alguma forma de desenvolvimentismo (como em Israel) e o modelo neoliberal (cuja primeira experiência prática foi feita sob Pinochet).

O modelo adotado por Paulo Guedes é o neoliberal, ou de Estado Mínimo. Ele inclui juros altos, superávits orçamentários para os pagar os juros, privatizações, livre flutuação do dólar, negação dos direitos e da fiscalização trabalhista, similar negação do direito ambiental, pouco investimento em educação, saúde, previdência ou qualquer serviço público. Como disse, o modelo foi primeiro aplicado no Chile, a partir de 1973, e na década de 1980 fez sucesso com Ronald Reagan e Margaret Thatcher. durante as décadas de 1990 e 2000, isso até pareceu compatível com a democracia. Como a imensa maioria dos países ricos e os subdesenvolvidos fora da Ásia adotaram algum tipo de neoliberalismo, a coisa ficou tão uniforme que passou a ser chamada de “pensamento único”. Nessa situação, os partidos políticos deixaram de se caracterizar por diferenças na economia e as disputas passaram a girar em torno dos costumes. A diferença entre direita e esquerda era tão somente entre o fundamentalismo religioso e as pautas identitárias (contra racismo, feminismo, homofobia e quetais). O povo acabou se distanciando da política porque, afinal de contas, a economia fazia sempre a gente pagar impostos e ainda pagar pela saúde, pela educação, pela segurança privada, pela previdência privada, pela água privatizada e pela energia que não para de aumentar. As pessoas votavam em partidos diferentes, mas o resultado era sempre que precisavam pagar para continuar pagando, sem qualquer direito social de qualidade mínima (salvo em poucos países da Europa). A esperança na democracia começou a diminuir.

Mas, até o início dos anos 2.000, nas empresas de comunicação social, ninguém conversava sobre a mais remota possibilidade de forças anti-democráticas tomarem o poder, como agora estão fazendo em tantos países diferentes. A hipótese nem passava perto dos radares de comentaristas destes conglomerados e, portanto, do grande público. O casamento entre ultraconservadorismo e neoliberalismo já era bem conhecido, desde o sucesso eleitoral de Ronald Reagan. Mas até a crise de 2008 parecia uma combinação plenamente compatível com a democracia. Só que, para o povo que continuava pagando (impostos) para continuar pagando (pelos serviços que deixaram de ser direitos sociais), não adiantava nada os políticos balançarem a bandeira da democracia. Democracia de verdade permite alternativas de verdade, sobre coisas que realmente interessam.

Então veio a onda autoritária atual, se alimentando da imensa insatisfação do povo com a classe política (na qual todos aplicavam o “pensamento único”). A maioria deu golpes ou estabeleceu regimes apenas aparentemente democráticos, mas continuou com a doutrina do Estado Mínimo. Funciona durante um tempo, ou seja, até o povo perceber que o autoritário também nega saúde, educação, previdência ou qualquer direito social. Em alguns países, como o nosso, ainda aproveita para entregar o patrimônio público ao capital financeiro (inclusive estrangeiro).

Alguns setores do Brasil tinham sido salvos dos exageros da abertura econômica e do desmonte da ordem pública. Ainda havia direitos trabalhistas e alguma previdência mínima, por exemplo. Ainda havia algum cuidado com o meio ambiente e se respeitava a Polícia Federal, os Bombeiros e umas poucas outras instituições. Durante os últimos seis anos isso tudo foi ameaçado novamente, com imensas perdas. No meio deste caos e da desesperança generalizada, o último debate eleitoral nem tocou no assunto da economia e mal mencionou a ruína dos direitos do povo. Não foi o melhor jeito de convencer as pessoas de que a democracia ainda importa.


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