De repente, todo mundo fala em semipresidencialismo

Entendendo as funções de Chefe de Estado e Chefe de Governo, nos cargos de Presidente e Primeiro-Ministro

Publicado em 18 de novembro de 2021.

As mudanças constitucionais são motivadas por planos e arranjos com olhos no futuro próximo, por um lado, e por reflexões sobre as estruturas do poder e projetos de maior duração para o país. São influenciadas pelo presente e pelos projetos de longo prazo. Então, para compreender a atual voga do semipresidencialismo, também é útil pensar nas intenções imediatas dos seus defensores e nas possíveis consequências para daqui a vinte ou trinta anos. Basta lembrar da Emenda 16/97, da reeleição. Aprovada em meio ao escândalo da compra de votos por 200 mil dólares cada parlamentar, ela ainda hoje tem efeitos na política nacional, estadual e municipal. Mudanças constitucionais têm previsíveis efeitos imediatos e outros, tardios e menos fáceis de enxergar.

Não há dúvidas sobre os interessados nos efeitos mais visíveis da criação de um semipresidencialismo no Brasil atual. Sem o Centrão o Presidente da República sobrevive, mesmo que fazendo muito pouco. O Primeiro-Ministro não conseguiria nem formar gabinete sem PP, PR, PSD, PTB, PSL, AVANTE e quetais. Mas é bom entender um pouco melhor a difença entre estes cargos e o papel institucional deles.

O primeiro passo é entender o significado do semipresidencialismo na Separação dos Poderes. A soberania é exercida por estes Poderes para (art. 3º da CRFB): buscar o progresso social, através das leis e das políticas públicas (segurança, moradia, saúde, educação, previdência e assistência social são alguns meios indicados no art. 6º da CRFB); planejar e orientar o desenvolvimento econômico (investimentos públicos, regulação e política fiscal são alguns dos instrumentos que a Constituição aponte, no art. 172 e seguintes). Para fazer isso é necessário fazer dois tipos de tarefa diferente, que são a de administrar a estrutura do Estado e administrar o futuro, isto é, “tocar o barco” e planejar a navegação. Nos livros de Teoria Geral do Estado, o cargo de Primero-Ministro fica com a Chefia de Governo e o cargo de Presidente fica com a Chefia de Estado.

A Chefia de Governo é uma função essencial e importantíssima. É a de administrar a máquina, implemantar planos, cobrar resultados, tomar decisões rápidas e manter o foco nos objetivos mais importantes. A Chefia de Governo faz as coisas acontecerem, imersa nos processos administrativos e capaz de levar o trabalho adiante. Esta é uma função à qual a gente identifica facilmente os bons administradores e administradoras. É aquele prefeito ou aquela governadora que realizam benefícios concretos para a sociedade, mostrando o resultado do seu trabalho.

A Chefia de Estado é o outro lado da moeda. É a tarefa de compreender o presente a fundo, de entender a situação internacional, a pluralidade da cultura brasileira, a macroeconomia e os arranjos produtivos do futuro. Ela se mostra ao pensar no futuro e planejar com cuidado em situações de imensa complexidade. Trata-se de trabalho que exige imensa dedicação, inclusive para costurar alianças e garantir que haverá interações férteis entre o plano e a realidade. Esta é a função que a gente identifica com a palavra “estadista”, de quem vê longe e transforma a realidade.

É dificílimo exercer a Chefia de Estado quando se está imerso em questões administrativas. O foco no presente é uma virtude para o administrador, mas é um obstáculo para o estadista. Por outro lado, manter a atenção à arquitetura do futuro, à flexibilidade de metas e ao diálogo entre desenvolvimento econômico e progresso social, isso tudo é crucial para uma pessoa ser boa estadista, mas é um obstáculo para a boa administradora. Há um argumento razoável, portanto, para a existência de dois cargos, um para cada tipo de atividade. É o que fazem as grandes empresas, dividindo estas funções entre cargos como Chairman, CEO, COO, Direitor Executivo ou Presidente, por exemplo.

Existem dois critérios para compreender quem efetivamente “manda”: depende do arranjo constitucional e da realidade política. Há vários exemplos de diferentes arranjos constitucionais no espectro entre o parlamentarismo e o presidencialismo. Na Inglaterra, os Primeiros-Ministros foram ganhando cada vez mais poder ao longo da história e hoje fazem as duas funções, deixando para a Rainha apenas o papel figurativo de representar a nação para si mesma. No Brasil de 1962, o Primeiro-Ministro era todo-poderoso e o Presidente quase não tinha atribuição alguma. Na França e em Portugal, atualmente, as tarefas são divididas entre o Presidente (mais Chefe de Estado) e o Primeiro-Ministro (mais Chefe de Governo). Nos Estados Unidos vige o presidencialismo puro, no qual o Presidente é Chefe de Estado e Chefe de Governo.

Mas também temos exemplos para entender que a realidade política tem um peso grande. Na Rússia, Putin mandou como Primeiro-Ministro e como Presidente. No Brasil, Fernando Henrique Cardoso foi um presidente muito mais poderoso no primeiro mandato, enquanto dividiu bastante do seu poder no segundo mandato com o Senador Antonio Carlos Magalhães. Durante o atual governo o Centrão vem aos poucos aumentando o próprio poder e diminuindo o ocupante da Presidência da República.

As estruturas constitucionais e a conjuntura social, política e econômica ajudam a compreender o que está acontecendo, por isso que Direito Constitucional é tão útil para quem gosta de política.


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