A Emenda estabelece que, em tempos de vacas magras, o certo é parar de alimentar as coitadinhas
Publicado em 16 de março de 2021.
A Emenda Constitucional 109, é uma ofensa à racionalidade econômica. Ela se apega a conceitos ideológicos ultrapassados e sem qualquer aceitação em nenhum país que conta, pelo simples motivo de que seu modelo não deu certo em nenhum lugar. Como provou Mark Blyth em seu livro Austeridade: a história de uma ideia perigosa, a receita causa apenas desgraça para a classe média e os menos favorecidos. Ganham apenas e tão somente os bilionários.
A noção principal da austeridade é a de que o Estado, principalmente durante crises, deve colocar pouco dinheiro na economia. Mais precisamente, ele deve colocar menos dinheiro do que a economia é capaz de lhe entregar. Se uma economia produz muito, ele pode investir. Se ela está produzindo pouco e a tributação cai, então ele não pode fazer mais nada. Não pode ajudar o país a sair da crise. Segundo a austeridade e a Emenda 109, em tempos de vacas magras o certo é parar de dar alimento a elas.
Vamos a alguns exemplos do que estão fazendo os governos, mundo afora. Os Estados Unidos vão investir 1.900 bilhões de dólares para estimular sua economia. A Coréia do Sul vai injetar 144 bilhões num programa chamado Green New Deal. Deixei o nome em inglês apenas para lembrar que a salvação do capitalismo, em 1933, foi exatamente uma série de programas de investimentos públicos chamado “New Deal, implementado pelo único presidente eleito quatro vezes nos Estados Unidos (ocupou o cargo de 1933 a 1945). O estímulo na Europa é de 2.265 bilhões de dólares. No Japão o valor será de 708 bilhões de dólares. Na China são 500 bilhões de dólares, mas o mercado chinês já funciona normalmente com investimentos públicos inimagináveis para nossos economistas. Os valores são diferentes para cada país, por óbvio, mas a solução para a crise, em todas as economias do universo conhecido, é investimento público.
Em meio ao incomensurável sofrimento imposto ao mercado brasileiro, o governo acena com uma Emenda Constitucional que proíbe o Estado de agir. A Emenda passou com a promessa do auxílio emergencial, uma tentativa de diminuir a fome que voltou aos lares brasileiros. Junto com isso, entretanto, impõe limites que impedirão este governo e os próximos de realizar qualquer planejamento econômico. Investimentos ou mesmo a remuneração dos recursos humanos do Estado são castrados, tornando menos que um sonho qualquer tentativa de reerguer a economia por meio de ação concreta do Poder Público.
Constitucionalmente, o papel do Estado na economia é o de planejamento, normatização, incentivo e fiscalização (artigo 175), além da prestação de serviços públicos (artigo 175) e da criação direta de riquezas (artigo 173). Escrevi “planejamento” em primeiro lugar porque todo mundo sabe o resultado da ação sem reflexão. O melhor é que o primeiro passo seja o pensamento estratégico de longo prazo, depois é que vem a implementação: criar leis que organizem o mercado; incentivar os comportamentos que precisam ser incentivados; e fiscalizar as regras de justiça. Para a gente realizar tudo isso é necessário, obviamente, muito dinheiro. Ainda tem a prestação de serviços públicos, como saúde, educação e segurança. A economia não funciona sem saúde, como estamos vendo, como também encontra dificuldades imensas onde não tem educação ou segurança. Serviços públicos precisam de dinheiro público. Cabe ao Estado, inclusive, fazer investimento direto na economia, produzindo infra-estrutura de logística, telecomunicações, saneamento, água, tecnologia, insumos para a indústria, o comércio e outras atividades econômicas. Para isso é necessário dinheiro. Então, quando a Emenda 109 impede o Estado de colocar dinheiro na economia ela o está impedindo de realizar qualquer forma de ajuda, qualquer forma de atuação elaborada com o mínimo de racionalidade.
A Emenda 95 já foi um desastre, coincidindo com a maior crise da história recente do país, antes da Covid aparecer. De 2019 até o início da pandemia, obedecendo a norma criada pelo governo Temer e aprofundando ainda mais os seus mandamentos, o governo tinha levado a economia a rastejar para trás. De março para cá as coisas pioraram muito, com alguns alívios criados pelo Congresso Nacional. Mas agora se impõem ainda mais restrições e maiores limites à atuação da sociedade para sair da crise em que se encontra. Trata-se de real esterilização das capacidades produtivas do país, impossibilitando o Estado de realizar suas finalidades constitucionais de progresso e desenvolvimento (artigo 3º).