Publicado em 2 de outubro de 2020.
A digna partida de Celso de Mello dá oportunidade para conversarmos um pouco sobre o papel do Judiciário na maneira da Constituição desenhar o Estado brasileiro.
Para entender melhor o assunto, vamos começar com uma característica importante das sociedades, que são os conflitos e cooperações. As pessoas vivem em situações diferentes e têm projetos que se entrelaçam uns com os outros, então conflitos e cooperações são parte da vida social. Autores tão distintos como Sartre e Maquiavel partilham essa noção essencial. Para lidar com isso, as pessoas e os grupos elaboram estratégias e desenham cenários, incluindo sempre as regras que se aplicam aos seus conflitos e alianças. Mudando as regras, pode-se mudar quem ganha e quem perde. É por isso que fazer uma lei é tão difícil. Se ela organiza um assunto de maneira “A”, ganham tais e quais grupos de pessoas, que apoiam essa redação. Mas perdem outros tantos, que, portanto, preferem outra forma (“B”) de regulamentar o mesmo assunto.
Numa sociedade democrática, todos têm oportunidade de se manifestar, portanto os lados “A” e “B” procuram expor seus argumentos, convencendo a sociedade e os seus representantes. Fazem lobby, manifestações políticas, artigos em meios de comunicação social, reuniões com autoridades, divulgam sua maneira de ver a situação e tentam levar à implementação de regras que os favoreçam. Quando a lei ou a falta de fiscalização permite, financiam partidos e candidaturas. Eventualmente negociam e incluem outras partes no debate, negociando também com elas. Na política democrática é muito dificíl ganhar sozinho, então as regras quase nunca saem exatamente da maneira como “A” ou “B” pretendem. Elas saem com o feitio do momento em que são criadas, com o arranjo possível naquele momento. E a sociedade, como a gente, nunca fica “pronta”, no sentido de perfeita e imutável. No meio do caminho, o debate esclarece melhor o povo, traz o assunto para todo mundo e nos leva a um entendimento político sobre ele. Tudo isso tem um efeito muito importante, que é o fato do lado perdedor ter tido oportunidade de se manifestar e lutar pelo seu interesse. A decisão ganha reconhecimento por causa disso, se tornando mais aceitável (mais legítima) durante o processo.
Numa ditadura, ou numa democracia falha, um lado consegue fazer as regras inteiramente do seu jeito, vencendo todas as batalhas. Como o outro lado não é ouvido, considera todas as decisões injustas e ilegítimas. O conflito, assim, não tem nem mesmo o final provisório que a democracia produz. Pior ainda, quem perde vai ganhando consciência prática a respeito da ilegitimidade do próprio Estado e passa a considerar as instituições meras farças. Por isso é importante que todos possam participar: a única voz que deve ser limitada é a que trama e age contra o próprio sistema democrático.
Mas a discussão não pode se estender ilimitadamente. Afinal de contas, precisamos definir regras claras para a vida cotidiana, isto é, para as relações econômicas e sociais em que vivemos “de verdade”. Foi o que conversei na semana passada com o Calos Motta e a Salete Silva, da Casa de Cultura e Cidadania Dalmo de Abreu Dalari.
Vamos pegar um exemplo real: de 1992 a 2003, o Distrito Federal fez quatro leis regulamentando jogo e loterias no seu território. Não estava sozinho, muitos estados e até alguns municípios fizeram leis sobre o assunto naquela época. Foi uma investida de fortes grupos de interesse para a liberação do jogo, inclusive os bingos.
O assunto ainda é quente e muita gente discute se é bom para a sociedade brasileira a gente reviver esse período, incluindo a discussão sobre vícios e o papel do Estado na sua prevenção e tratamento. Existe capital estrangeiro preparado para investir no Brasil, montando grandes empreendimentos para explorar os jogos de azar (para uns, sorte para outros). Existe capital nacional também, alguns com experiência no assunto e ansiosos para trazer para a luz da legalidade atividades que sobrevivem no lusco-fusco há décadas.
Voltando à época mencionada, foram criadas várias leis estaduais permitindo o funcionamento de bingos, sob vários argumentos e arranjos entre empresas, clubes de esportes ou entidades benemerentes. Leis estaduais, repito, passadas pelas assembleias legislativas e votadas pelos deputados estaduais, no exercício do seu poder de legislar. É do jogo.
Em 1998 foi promulgada a Lei Federal nº 9.615/98, permitindo o estabelecimento de bingos. Em 2.000 essa permissão foi revogada por outra lei federal (nº 9.981/00), mas as leis estaduais continuaram sendo criadas. O assunto, assim, não tinha definição e era mantido artificialmente em dúvida, apesar da Constituição estabelecer, claramente, que sorteios não são assunto dos estados nem do Distrito Federal ou dos municípios (art. 22, XX).
Aí entra o papel do STF. Julgando a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2847 e, depois, editando a Súmula Vinculante nº 2 o assunto finalmente se encerrou, determinando a atual proibição.
O Judiciário toma decisões definitivas, essa é sua força e sua virtude. Ele defende um certo entendimento da Constituição, com o qual setores da sociedade concordam ou outros discordam, como é inevitável em assuntos humanos. Os interessados até hoje reclamam que deveriam ter ganhado. Se a decisão tivesse sido diferente, milhares de famílias empobrecidas estariam também reclamando. O que não se discute é que há decisão clara e definitiva sobre o assunto, graças à atuação do STF e do Ministro que agora se despede.