A confusão entre as palavras “direita” e “esquerda”

Conservadorismo, liberaismo e outros jeitos de ver a sociedade acabam se confundindo no debate político, então algum esclarecimento é útil

Publicado em 27 de janeiro de 2022.

No debate público existe uma complexidade enorme que os termos “direita” e “esquerda” muitas vezes não alcançam. Elas são palavras úteis e continuam tendo algum significado, mas não são suficientes e a gente precisa entender um pouquinho melhor o que escapa desse modelo. Na política interna, é melhor pensar em três duplinhas de termos: conservadorismo, liberalismo e a esquerda, que podem ter expressão democrática ou autoritária. Os três são propostas de organização da sociedade, do mercado e da política e vou tentar explicar de maneira bem simples. Em cada campo tem uma enormidade de subdivisões e correntes diferentes!

No conservadorismo o critério para toda a estrutura social, econômica e política é a tradição, seu principal valor é a manutenção da ordem. Nos países historicamente cristãos, são as tradições cristãs que os conservadores seguem para o Direito Privado, especialmente no âmbito das famílias, mas também nas relações de trabalho e nos negócios. No Direito Público, preferem pouca tributação e confiar nas doações e ações filantrópicas dos mais ricos. Pretendem um Estado que quase nada faça, porque as igrejas e outras instituições tradicionais se encarregariam da educação e de outros cuidados sociais. Julgam sagrados os direitos de propriedade e de atuação das entidades religiosas que preferem. Como as decisões do conservadorismo são fundamentadas na moral, existem campos da ordem social que ficariam fora da discussão democrática, mas mesmo assim existe um conservadorismo democrático, moderado.

No liberalismo e na esquerda, o critério de estruturação social, econômica e política é a razão. Isso faz a diferença essencial entre estas duas propostas e o conservadorismo, que se funda na tradição. Para a esquerda e o liberalismo, é bem mais fácil se compatibilizar com a democracia, exatamente porque defendem a possibilidade de se tomarem decisões políticas a partir da discussão aberta sobre os interesses das pessoas e grupos sociais. Por causa deste fundamento, eles olham para o futuro, isto é, para as consequências das decisões. Pensam em quem ganha e quem perde com as regras de organização da sociedade, da economia e da política.

Os principais valores do liberalismo são a liberdade como “ausência de proibições ou interferência” e a igualdade como tratamento idêntico para todos. Para os liberais, em geral, o Direito deve ser pequeno e as decisões políticas precisam caminhar para o mínimo possível de interferência nas relações entre as pessoas. Isso inclui poucos direitos trabalhistas, pouca previdência ou assistência social, poucos serviços públicos, substituição do Judiciário por sistemas de mediação e arbitragem privados, pouca proteção ao meio ambiente ou aos interesses coletivos. De maneira geral, para os liberais, quanto menos regras, melhor. As regras que existirem devem tratar todos de maneira igual, salvo raras exceções. Portanto homens e mulheres, ricos e pobres, brancos e negros, analfabetos e pós-doutores, trabalhadores e capitalistas, pessoas com ou sem deficiências, idosos, jovens ou adultos: a lei não precisa cuidar de ninguém de maneira especial. O liberalismo acaba ajudando quem tem mais vantagens na sociedade, porque num jogo sem regras, os mais fortes vencem quase sempre.

Os principais valores da esquerda são a liberdade como “garantia de condições materiais para decidir” e a igualdade como tratamento que leva em conta as diferenças entre todos. Para a esquerda, em geral, a sociedade precisa garantir um mínimo de condições de vida para as pessoas poderem ter sua liberdade. Um exemplo dessa postura é a educação e a saúde públicas, gratuitas e de qualidade. Na Europa é muito comum que as escolas públicas sejam frequentadas por todo mundo, igualmente. Tem até país no qual é praticamente impossível ter escolas privadas, porque a sociedade pretende que todos tenham as mesmas condições materiais para estudar e se desenvolver intelectualmente. Também é típico da esquerda ter muitos direitos trabalhistas, bons sistemas públicos de previdência e assistência social, além de muitos outros serviços públicos. Por isso as regras tentam cuidar mais de quem mais precisa, ajudando idosos, pessoas com alguma deficiência, mulheres e outros grupos que têm desvantagens sociais e, principalmente, econômicas. Estas regras acabam distribuindo as vantagens do jogo social, tornando o campo mais nivelado.

O sentido de democracia é um pouco diferente para liberais e esquerda. Os liberais preferem menos decisões públicas e privilegiam decisões privadas, então um sistema simples de eleições resolve sua necessidade de legitimar as leis. Para a esquerda a interferência das leis na sociedade e na economia é bem maior, então precisa ter muito maior esforço para dar legitimidade a estas decisões. Por isso a esquerda prefere sistemas com maior participação direta do povo, como plebiscitos, orçamento participativo e conselhos com participação da sociedade organizada. Pelos mesmos motivos, os liberais acreditam menos em sindicatos e associações para a defesa de interesses coletivos, ao passo que para a esquerda eles são fundamentais para o funcionamento da política.

Do ponto de vista de princípios e fundamentos, o liberalismo é bem mais próximo da esquerda, mas não é o que acontece na prática política. Quase sempre os liberais se aliam com os conservadores, porque os dois sistemas ajudam mais ou menos as mesmas pessoas. O conservadorismo prefere pouco Estado e poucas leis, porque isso favorece a organização tradicional da sociedade. Os liberais preferem pouco Estado e poucas leis, porque isso diminui as proibições e não cuida especialmente de ninguém. Os motivos ideológicos são diferentes, mas a prática é a mesma: pouco Estado e poucas leis. Por isso é fácil confundir uns com os outros e chamar os dois de “direita”. Na maioria dos casos (principalmente quando o assunto é economia, trabalho e meio-ambiente) a confusão não tem tantas consequências. Mas em alguns assuntos eles são bem diferentes, como no caso dos costumes. Apesar da bandeira de costumes não ser a principal bandeira da esquerda, ela acaba ganhando importância para limitadas alianças com os liberais.


Publicado

em

por

Tags: