Publicado em 21 de outubro de 2020.
Uma ideia muito frequente é que as leis procuram sempre construir um lugar melhor para todo mundo. Mas não é sempre assim. Às vezes quem cria as regras tem que optar entre os lados de um conflito, melhorando a vida de uns e piorando a de outros.
Vamos começar com essa frase: trabalhadores e trabalhadoras têm direto à “redução dos riscos inerentes ao trabalho”, enquanto as empresas devem obedecer “normas de saúde, higiene e segurança” (art. 7º, XXII da Constituição). Imaginemos uma professora, que vamos chamar de Bárbara Helena. Ela ensina em uma sala que dá para um pátio barulhento à beça, sem conseguir fechar porta nem janela. Ela sabe que o aprendizado dos seus estudantes vêm sofrendo com a dificuldade de comunicação. Sabe também que está sem voz o tempo todo, porque precisa ficar gritando por causa do barulho. Começa a pesquisar uma solução e vê que tem formas de diminuir o problema. Dá para melhorar a acústica da sala, para encontrar um jeito de fechar janelas e portas com algum isolamento ou para arrumar um microfone. Ela também descobre que ficar sem voz não é “normal”, é sintoma de um problema de saúde. Então vai conversar com a empresa ou com a administração da escola e a resposta é que “está tudo bem”, dizem que ela deve estar “rouca” por algum outro motivo (“andou bebendo alguma coisa gelada?”).
O trabalho é o ambiente no qual passamos a maior parte do tempo fora de casa, por isso ele tem tanta influência na saúde da gente. Então ele tem um impacto muito grande na saúde da gente, principalmente se é feito em situações que causam adoecimento. É o caso de quem tem que enfrentar calor ou frio excessivos, lidar com substâncias que fazem mal ou falar durante horas em ambientes muito barulhentos. Então, há atividades e ambientes que causam doença, como aconteceu com a nossa amiga. Depois de um tempo naquelas condições, Bárbara Helena já não consegue mais trabalhar como professora. Começa a fazer outra coisa, porque é batalhadora, mas tinha dedicado anos de estudo e aprimoramento para ser uma ótima professora. Sem saída, decide mover uma reclamação trabalhista e procurar alguma indenização pelo que o antigo trabalho tinha causado em sua saúde. Reformas no Direito Processual do Trabalho vêm criando dificuldades imensas para o trabalhador ser ouvido na Justiça do Trabalho, tendo como resultado uma redução de mais de um terço no volume de ações. Mas ela enfrenta isso tudo e explica ao juiz que seus problemas de saúde vieram dos anos tando aulas naquele ambiente ruim. Então encontra um novo aperto: precisa provar, no processo, que existe uma ligação entre o ambiente barulhento e as consequências para a sua garganta. A conexão é óbvia, o juiz sabe, a escola sabe, você, que está lendo esse artigo, sabe que fica sem voz quando grita durante muito tempo e que precisa gritar para alguém te ouvir num ambiente barulhento. Mas os professores precisam provar esta obviedade em juízo, com perícia técnica e laudos que fazem o processo demorar ainda mais, além do custo disso tudo.
A dificuldade de fazer estas perícias foi medida e suas consequências foram estabelecidas estatisticamente, num estudo recentemente publicado na Revista Brasileira de Saúde Ocupacional e do qual sou co-autor, junto com Mariana Nasimento Barbosa Lins e Maria Lúcia Vaz Masson. Foram analisadas todas as decisões do Tribunal Superior do Trabalho (TST) sobre situações parecidas com o da Bárbara Helena, entre 1999 e 2016.
É que em certos casos há provas em número suficiente para deixar claro, cientificamente claro, que a pessoa adoeceu em razão do trabalho. Por isso existe uma figura muito útil no mundo jurídico, que é a presunção. Quando se tem suficiente prova de que a causalidade existe, ela passa a ser presumida. A consequência é que não se precisa gastar tanto dinheiro para fazer mais uma prova, em mais um processo, criando mais um obstáculo para mais um trabalhador ver o seu direito reconhecido. No lugar desse desperdício tão nocivo, aplica-se a presunção. Se houver dúvida e a empresa juntar algum indício de que o caso é especial, ainda se pode fazer a prova toda. Mas, se o caso for idêntico a todos os outros, o juiz pode aplicar a regra da presunção e reconhecer que o emprego adoeceu o trabalhador. Estudos vêm comprovando, há décadas, a ligação entre algumas atividades, como a da nossa amiga professora, e o adoecimento que ela sofreu. Finalmente, há pouco mais de um mês, o Ministério da Saúde emitiu uma portaria que poderia iniciar o reconhecimento da presunção no caso da Bárbara Helena. Mas, no dia seguinte, sem explicação baseada em qualquer estudo minimamente aceitável, a portaria foi revogada, tornando ainda mais atual o estudo feito com os julgados do TST. Com esta revogação o Ministério da Saúde criou mais um obstáculo para que professores possam desempenhar seu trabalho com alguma saúde.
Não é sempre que as leis ajudam quem mais precisa.