Quando o Estado defende uma religião, mesmo majoritária na populaçao, ele destroi condições para qualquer liberdade
Publicado em 22 de abril de 2022.
São Francisco de Assis (1183/1226) e Martinho Lutero (1483/1546) foram contundentes críticos da hierarquia católica e de muitas características da Igreja. Os dois viviam em ambientes nos quais a Igreja Católica Apostólica Romana era o principal poder social e político, controlando as mentes e preferências de todos. Em ambos os casos também havia um outro poder, a burguesia, ainda nascente no caso de Francisco e muito melhor estabelecida no caso de Lutero. A cidade de Assis, no tempo de Francisco, distava 300 anos e 1.200 Km da Eisleben em que nasceu e morreu Lutero, o que ajuda a explicar algumas difereças entre eles. Francisco foi integrado à Igreja Católica, mas não havia hipótese disso acontecer com Lutero. Além das diferenças históricas, e talvez exatamente por causa delas, os escritos luteranos incluiam um assunto que nem mesmo é mencionado na teologia franciscana: a soberania.
À época de ambos os pensadores, os cristãos ocidentais se identificavam com a Igreja Católica, seus ritos, santos, teologia e estrutura eclesiástica. A Bíblia era interpretada pelos sacerdotes católicos e mantida próxima da vida das pessoas pela Igreja. Ser cristão era obedecer aos mandamentos do Cristo, da maneira ensinada e traduzida para o cotidiano pelos seus sacerdotes. A Igreja era efetivamente católica, no sentido de geral, universal, total. Para eles, a única maneira de ser cristão era estar conectado com uma institução visível, materialmente poderosa e com domínio sobre vastidões territoriais, o Sacro Império como seu executor secular e inúmeros centros de cultura e pensamento que forjavam toda a elite intelectual visível. A Igreja era uma potência material, concreta, visível em toda a sua magnificência.
Lutero começa o argumento a respeito da soberania afirmando que a igreja (ekklēsía) não era a instituição, mas o povo. A essência da igreja são as pessoas em assembleia, em reunião de fé, de valores e crenças. A afirmação é hoje uma das pedras fundamentais da própria teologia católica, a qual era, à época, e ainda é hoje fonte de instrução e construção intelectual refinadíssimas. Exemplos atuais são os Papas Francisco e Bento, pensadores superlativos em qualquer sentido no qual se pretenda empregar a palavra “pensador”. Mas voltemos a Lutero, ele partia da noção de igreja como assembleia para separar o reino do espírito do reino do mundo. O espírito é eterno, fora do tempo e dos séculos, enquanto a política é secular, conectada com o tempo e com as vidas humanas. O espírito é ubíquo, estando em todo lugar e não se prendendo a qualquer matéria específica, equanto a política é mundana, conectada com a realidade concreta e voltada para a satisfação de necessidades materiais das pessoas. Distinguindo o espiritual do mundano, Lutero criava um ambiente no qual a fé podia ser muito mais livre, ao mesmo tempo em que fundava as bases para a soberania dos príncipes.
Sem dividir o espírito da matéria, não sobraria nada para o Estado governar. Com a divisão, a religião fica com o espírito e o Estado com a matéria. Os Estados passaram a ordenar, com as suas leis seculares, o tempo das pessoas, quer dizer, seus negócios, trabalho, vida cotidiana, comércio, direitos fundamentais e organização social. Passaram a ordenar, também com suas leis mundanas, o espaço em que as pessoas vivem, estabelecendo propriedades comuns, como praças, ruas e mercados, e as propriedades privadas, como as casas, os comércios, manufaturas, fazendas e até as fronteiras do próprio Estado. As leis passaram a ser atos políticos, não teológicos. Seu fundamento era poder típico do reino do mundo, não do reino do espírito. Lutero foi protegido e apoiado pelos príncipes germânicos, ganhando condições para fundar uma cristandade diferente. Os príncipes ganharam, com Lutero, condições sociais para fundar uma organização política separada da hierarquia católica, o Estado.