Como o STF ganhou os poderes para decidir assuntos importantes como o passaporte de vacinação e outros que causam tanto debate?
Publicado em 23 de dezembro de 2021.
Os poderes e deveres do STF mudaram bastante desde que a atual Constituição foi promulgada, na tarde do dia 5 de outubro de 1988. Os Ministros daquela época tinham sido, quase todos, nomeados pelos generais da ditadura e não tinham qualquer inclinação para exercer a independência que se espera de uma Corte Suprema. Mais importante que isso, a Constituição de 88 não lhes dava grandes poderes, limitando o Tribunal quase sempre à função de última oportunidade para decidir casos concretos. Para decidir casos mais gerais eles tinham apenas a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn). A Constitição ainda fazia referência à possibilidade de inconstitucionalidade por omissão e a uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental, mas essas duas possibilidades ainda eram vagas e seus processos não tinham regulamentação.
Hoje o STF tem extensas possibilidades para o exercício de sua independência, impondo as suas interpretações da Constituição com todo o peso jurídico e institucional de um Poder que plenamente se equivale ao Legislativo e ao Executivo. Em várias circunstâncias históricas que o espaço não permite explorar agora, o Congresso Nacional (Deputados Federais e Senadores) foram construindo a independência e o peso que os Ministros do Supremo hoje exercem.
Em 1993 o Congresso promulgou a Emenda Constitucional nº 3, criando a Ação Declaratória de Constitucionalidade (art. 102, I, a) e dando a ela o efeito vinculante sobre a Jurisdição e a Administração (102, § 2º). Essa ação ainda é útil para dar maior força às leis e outros atos criados pelos outros Poderes, mas também pode ser usada para declarar a inconstitucionalidade dos mesmos atos. Essa possibilidade não foi inventada pelo STF, foi o próprio Congresso que a criou, em 1999 ( Lei Federal 9868/99).
Aliás, essa lei 9868/99 ainda criou a chamada “modulação dos efeitos” das decisões do STF. Antes deste ato dos Deputados e Senadores, sancionado e promulgado pelo Presidente da República, o STF podia dizer que uma lei era inconstitucional, mas então ela ia ser inconstitucional desde o nascimento. Com a tal modulação, o STF ganhou o poder de dizer que a lei tinha valido durante um tempo e só a partir de um tal dia ela não ia valer mais. Podia dizer inclusive um dia no passado ou no futuro, escolhendo a data para a lei deixar de valer. Em 1999 ainda deu tempo para o Congresso criar a Lei Federal 9882/99, regulamentando e fixando os poderes da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental.
Em 2004 o Congresso promulgou a Emenda nº 45, com uma série de novos poderes e um arsenal de novas possibilidades interpretativas para o STF. Essa emenda deixou claro o efeito vinculante das ADIns (art. 102, § 2º), uma dúvida que precisava ser resolvida para dar maior solidez às decisões do STF. Esse efeito vinculante significa que ninguém, no Judiciário ou na Administração Pública, pode ir contra o que o Supremo já decidiu. O Congresso, volto a lembrar, foi quem criou isso. E também criou, na Emenda 45, o mecanismo para o próprio STF garantir o efeito vinculante, que é a Reclamação Constitucional (art. 103-A, § 3º). Por falar em “vinculante”, foi essa emenda que criou as Súmulas Vinculantes (art. 103-A), que o STF usa para fixar a sua interpretação da Constituição de maneira obrigatória para os três Poderes quando exercem a Jurisdição ou a Administração. Na mesma Emenda 45 ainda turbinou o Recurso Extraordinário, criando a sua repercussão geral (102, § 3º) e deslocando competências que eram do STJ para o STF (art. 102, III, d).
O exercício desses novos poderes foi plenamente regulamentado, para dar maior certeza, na Lei Federal 11.417/2006 (discutidas pelos Senadores e Deputados e sancionadas e promulgadas pelo Executivo).
Em 2009 veio a Emenda 61, que excluiu os Ministros do STF da nomeação ao CNJ pelo Presidente da República (art. 103-B, § 2º). Antes, todo mundo no Conselho Naciona de Justiça era nomeado pelo Chefe do Executivo, agora isso não inclui os Ministros do STF, que têm vaga constitucionalmente garantida e não dependem do Presidente para isso.
Em 2009 o Congresso voltou a desenhar os poderes do STF, com a regulamentação da ADO e da sua Cautelar, para dar maior segurança e agilidade às decisões do Supremo, com a Lei Federal 12.063/2009. O Código de Processo Civil, finalmente, deu um peso enorme para as Súmulas de jurisprudência, que viraram mais um caminho para o STF exercer sua influência e poder no Judiciário inteiro.
Ressalto que estas decisões do Congresso ajudaram a organizar a Separação dos Poderes e foram úteis para o STF defender a democracia e a Constituição. Mas é importante, para quem gosta de política e de Direito Constitucional, saber que o STF não criou seus poderes. Na imensa maioria das vezes, ele está fazendo o que os Deputados, Senadores e Presidentes da República disseram que ele podia fazer.